Balanço alicerce – o ponto do poético
na oscilação. Uma
dobra sintetiza a sutileza do nome desta exposição, que condensa um período de
mais de 15 anos de produção de Tatiana Blass.
Composta por cerca de 40
trabalhos, a mostra abarca momentos distintos de uma trajetória múltipla que
transita por diversos meios – pintura, vídeo, escultura e instalação – e que
nunca deixou de abrigar a ambiguidade e a beleza.
“Balanço
alicerce” é um título que, em exercício de redução poética, revela a ética
especial do amplo percurso de uma artista que, mesclando e justapondo variadas
referências – teatro, cinema, literatura e música – transita de forma
brilhante, por vibração e contágio, regiões e linguagens fronteiriças. A
exposição deslinda a instabilidade própria de um trabalho que exibe um mapa de
vestígios de espaços íntimos e pensamentos, de relações com as coisas em estado
de latência. A instabilidade, aqui, se refere ao mais profundo rigor que se
pode dar ao traço, à rasura, à pincelada, à cada gesto que se encontra na
oscilação entre o firme e o dobrável, entre matérias e linguagens heteróclitas.
Esse agudo
ponto de invenção pode ser vislumbrado na série “Bagunça”, trabalhos produzidos a partir de brincadeiras em que seus filhos
iniciavam as pinturas e, na sequência, Tatiana prosseguia,
contornando a cena. Assim, aproximando o fazer artístico das brincadeiras
infantis, algo se revelou, tão enigmático quanto mobilizador, de uma relação
com um saber ainda em estado não-domesticado.
Em
uma série de trabalhos que tem como principal referência o dramaturgo Henrik
Ibsen, cujas peças – de forte teor psicológico e com personagens que abrigam
muitas dúvidas e ambiguidades – chamaram sua atenção em uma residência
artística realizada nos fiordes da Noruega, Tatiana constrói ambientes, a
partir de cenas de teatro. De alguma maneira, a paisagem magnética do vale
estreito e profundo, assim como as habitações e a arquitetura do lugar, ficaram
impregnadas em suas pinturas. Os planos se diluem em um só corpo
pictórico, tornando indistintos fundo, figuras humanas, cadeiras,
mesas e outros objetos que compõem as cenas, sem distinção exata
entre forma e cor. Tatiana dilui e reconfigura experiências de temporalidade e
contemplação, revelando o mundo por fragmentos do real.
Em outra série de pinturas, estas
feitas sobre vidro, há uma inversão da técnica tradicional da pintura a óleo.
Realizada no anverso da superfície, a primeira camada de esmalte aplicada
sempre fica imediatamente visível, resistindo às sobreposições de novas camadas.
A artista cria recortes e intervalos entre os campos de cor na superfície do
vidro fazendo o mundo aparecer por meio de vestígios, em uma construção
rigorosa e, ao mesmo tempo, sublime de cor e forma.
Suas obras em papel ou tela de
algodão – em que o guache se entranha na trama do tecido – guardam uma questão
cromática muito singular. Tatiana usa
guache que, por característica, tem cor opaca e intensa, e enfrenta o exercício
cromático de forma única, com predileção por cores de convivência difícil como
laranja com rosa, amarelo limão com marrom, e
outras combinações que se atravessam de maneira absolutamente singular.
Em “O resto que fica”, série
realizada por ocasião de uma residência artística em Londres, Tatiana realiza
intervenções em fotografiias de bicicletas abandonadas nos metrôs londrinos,
com tinta a óleo branca. Como Alberto Giacometti – que se espantava e se
maravilhava com a diferença mínima, radical e singular de cada cena, e dizia
“tudo me ultrapassa” – a artista também não fecha os olhos às revelações
cotidianas e deixa entrever que aquilo que chamamos realidade é uma construção
que nunca está de todo finda, cabendo ao gesto artístico fornecer algum
contorno e possibilidade de fruição.
Na seleção de vídeos, quatro
duplas de personagens desenvolvem algum tipo de diálogo ou interação. Em “O
engano é a sorte dos contentes” um mágico monta seu número de levitação e o que
acontece acaba por criar outra forma que deixa entrever e eclodir o caráter
enigmático do que nos cerca. Já em “Hard
Water” – cujo título é uma referência à água de Londres, que contém calcário –
as roupas das atrizes estão presas a inúmeros fios que saem de carretéis
colocados em ganchos nas paredes da sala ou soltos no chão e, à medida que elas
se movimentam, os fios se soltam e se emaranham. Do olhar e imersão de Tatiana
nos espaços, surgem fragmentos de uma língua íntima e um caleidoscópio de
cartografias afetivas diversas, que se interpenetram e mobilizam algo do mistério
daquilo que se entranha no equilíbrio tênue da vida.
Na vídeoperformance “Encrenca” –
ação que se passa em Ålvik, na Noruega – duas pessoas, uma brasileira e um
norueguês, não falam a mesma língua. Como um jogo, cada um fala pausadamente
seu idioma de origem para que, em seguida, o outro repita. Como marionetes,
eles revezam as funções de comandante e comandado e, através das roupas, gestos
e movimentos, revelam desconcertos com inesgotáveis contradições.
“Contratempo” é uma dança
coreografada, uma busca de maneiras para escapar em direções opostas, no sobe e
desce de escadas rolantes. Trata-se do ruído do corpo – e do próprio pensamento – que
busca seu espaço de existência. É, efetivamente, no sentido radical indicado
pelo filósofo Philippe Lacoue-Labarthe, “uma experiência como travessia de um
perigo na relação com o outro”.
A série “Metade da fala no chão” – a mesma da
instalação permanente “Piano Surdo”, que faz parte da Coleção do Instituto
Figueiredo Ferraz – traz esculturas em que instrumentos musicais são emudecidos
com cera, tubos de latão, lã de ovelha crua ou bronze fundido, presentes na
exposição “Apito” e “Clarinete”.
“Reviravolta” faz parte de um conjunto de obras criadas
com mangueiras de borracha e ferro entrelaçadas, um estudo das disposições,
deformações, torções e alongamentos que modificam a ação e presença matéricas
no mundo.
Em “Entrevista” – série de esculturas fundidas em ferro
– cabeças e equipamentos formam um só corpo. Em “Entrevista #3”, microfones com
fios plugados à parede são enfiados em uma cabeça. Já em “Entrevista #2”, o
olho da cabeça de quem filma se junta ao visor da câmera, e a boca de quem é
filmado se conecta à lente.
O conjunto das obras de Tatiana Blass transcende o uso
de uma técnica ou linguagem única e cria uma atmosfera comum que, sem ser
óbvia, evoca grande força poética na interseção e justaposição de tempos e
elementos. Aqui, vídeos abrigam força pictórica e estabelecem relações
cromáticas, as personagens podem se desdobrar em cenas silenciosas ou em
sussurros presentes nas pinturas e nas esculturas.
Os trabalhos inspirados no teatro igualam o papel em
branco ao palco. São pinturas fantasmagóricas, portadoras de ambiguidade em que
tudo se mistura e decanta: pessoa, sombra, cadeira, a revelação enigmática de
coisas que estão por debaixo da tinta. Uma fina melancolia atravessa as
solidões, fazendo pulsar o território do informe e do indomesticável. Este é o
lugar que interessa e para onde a artista, em vertigem, nos conduz. Nas
esculturas as formas respiram, porosas e alegóricas, e parecem movimentar-se em
direção a outras formas, instáveis e pulsantes como a vida.
O ato de transfigurar a representação, singularizando
cada obra em uma multiplicidade própria de linguagens, inclui ruídos e sons
como uma sinfonia que, ao final, revela um quase silêncio. Um burburinho, como
um poema de E. E. Cummings: “nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente
além de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio: no teu gesto mais
frágil há coisas que me encerram, ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado
perto”.
- Bianca
Coutinho Dias
SERVICE
Exposição "Balanço Alicerce"
Instituto Figueiredo Ferraz
Período: 23.03 à 25.05
R. Maestro Inácio Stábile, 200
Alto da Boa Vista, Ribeirão Preto - SP
Terça a Sábado, das 14h às 18h
Entrada Gratuita
INSTITUTO FIGUEIREDO FERRAZ (iff.art.br)
IMAGENS
Tatiana Blass - Balanço alicerce #2, 2023, Guache e acrílica sobre tela, 100 x 120 cm, Foto: Daniel Mansur
Tatiana Blass, Balanço alicerce #3, 2023 (detalhe), Foto: Daniel Mansur